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Quando a música pede silêncio
Nessas manhãs de outono, enquanto as crianças dormem, o tempo parece pedir uma boa música.
Em meio às estações de rádio, CDs e streamings de áudio, algo prende minha atenção: os velhos discos adormecidos em meu estúdio.
Confesso, não sou um daqueles colecionadores que conseguem dedicar a essas mídias o tempo que merecem, mas decido — apenas para sentir novamente a experiência — colocá-los de volta em minha vitrola.
Segurar a mídia delicadamente entre os dedos é quase um ritual.
Observar os sulcos no disco de vinil, as divisões entre as faixas, e perceber, na contracapa, os nomes de artistas, técnicos e músicos que contribuíram para que a obra alcançasse sua forma final, é como visitar uma pequena galeria sonora. (Para manter o tom, não menciono o trabalho que foi limpar a poeira…risos)
Há algo de artesanal, de humano, que sobrevive ali.
À medida que a agulha do toca-discos passeia suavemente entre as faixas, o som que se produz transcende o tempo.
É possível ouvir nuances de agudos e graves em perfeita sintonia — o que talvez aconteça justamente por eu estar, aqui, em silêncio e cuidado, apenas ouvindo. Sem pressa. Sem distrações.
Quando ouvir era um acontecimento
Não sei ao certo se o que sinto agora é apenas nostalgia ou também saudade de um tempo em que ouvir música era uma experiência completa — um acontecimento.
A música, hoje, parece ocupar outro lugar: tornou-se pano de fundo para as tarefas do dia a dia.
E talvez por isso se tenha perdido parte da variedade e da qualidade das canções.
Alguns artistas, apesar de sua beleza e profundidade, já não figuram entre os mais executados nas atuais plataformas digitais.
Não por falta de talento, mas por falta de visibilidade diante dos algoritmos que decidem o que se ouve — e o que se cala.
O gosto moldado pelas máquinas
O que talvez nem todos percebam é o quanto os algoritmos — esses curadores invisíveis — influenciam o que ouvimos, quando ouvimos e quantas vezes voltamos a ouvir.

Imagem de Tom Majric por Pixabay
Eles observam nossos hábitos, anotam o que escutamos no café da manhã, o que deixamos tocando no carro ou no fone de ouvido enquanto caminhamos.
E, pouco a pouco, vão nos moldando sugestões, listas, destaques — como se conhecessem nossos gostos melhor do que nós mesmos.
Mas o gosto, assim conduzido, corre o risco de deixar de ser nosso.
As plataformas coletam milhões de dados por segundo.
Se uma música é tocada muitas vezes em pouco tempo, entra numa engrenagem que a recomenda a cada vez mais usuários — e esse ciclo de reforço costuma favorecer apenas os artistas mais populares.
Os demais, mesmo que tenham produzido algo profundo, delicado ou inovador, acabam soterrados no silêncio digital.
Não por falta de qualidade, mas por falta de números.
O algoritmo não escuta com o coração. Ele não percebe a beleza de uma metáfora bem colocada, nem se emociona com a timidez de um piano no início de uma canção.
Ele apenas lê estatísticas, e distribui as faixas como quem reorganiza prateleiras de um supermercado musical.
Com o tempo, isso molda também o que é produzido. Os artistas passam a criar pensando no que agrada ao sistema, no que se adapta bem às playlists automatizadas.
E assim, o diferente, o ousado, o que pede tempo e escuta atenta, vai ficando para trás.
A quem pertence a música?
O que muitos não sabem é que, por trás dessas plataformas modernas que oferecem milhões de músicas ao alcance de um toque, existe uma engrenagem comercial que também determina quem será recompensado por ser ouvido.
A maior parte do valor pago pelos assinantes — cerca de 70% — vai para gravadoras, editoras e distribuidoras. O restante, em média 30%, fica com a plataforma, que cobre seus custos, investimentos e lucros.
O artista, esse elo sensível da corrente, recebe centavos por stream — e isso, muitas vezes, apenas se for grande o suficiente para aparecer nas estatísticas.
É o modelo chamado pró-rata, em que toda a receita do mês é repartida proporcionalmente conforme o volume total de reproduções.
Ou seja, mesmo que você escute apenas artistas independentes, sua assinatura será dividida com os mais ouvidos do mundo — os gigantes do momento.
Talvez por isso voltar ao vinil, nessas manhãs de outono, seja também reencontrar a liberdade de escolher — sem pressa, sem algoritmo, apenas por sentir.
Talvez seja não uma forma silenciosa de resistência, mas um minuto de reflexão.
Um gesto de reverência a tudo que ainda pulsa, mesmo esquecido.
Um tributo à música que me formou e aos artistas que deixaram ali, no sulco de um disco girando, um pedaço da alma.
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