“Quando alguns sonhos não se realizam, nascem histórias que alimentam novos sonhos”
– Gilson Chaves
Permita-me contar um pouco da História da Banda Acordes – A Banda que não aconteceu.
O mês de Dezembro de 1987, foi marcado por uma tragédia familiar, a perda do Tio Salomão, aos 36 anos de idade, vítima de um AVC.
Naquele verão, fui ao rio Paraguaçu para espairecer, aquele era o melhor lugar do mundo pra isso. No verão, as pessoas fugiam dos fornos de suas casas e mergulhavam naquelas águas escuras.
Havia um lugar conhecido como “a Prainha”, era um espaço de aproximadamente 50 metros, situado à margem esquerda, onde aos domingos as famílias iam para pequenas partidas de futebol de areia, para a prática da capoeira ou para piqueniques, quando as duas primeiras opções permitiam.
Duzentos metros à esquerda deste lugar, as mulheres tratavam “o fato” dos bois ao amanhecer, deixando no ar da região um “perfume” característico. Provavelmente nenhum outro lugar no mundo tinha aquela fragrância, levemente desagradável…
Não à toa, os cachorrinhos da região olhavam e cheiravam, com uma certa admiração e desejo, os banhistas daquele lugar!
O Início
Naquele lugar, se deu o primeiro contato com o Valdomir.
A gente tinha a mesma idade e ele tinha um conhecimento básico de violão.
A memória me trai, mas de algum modo ele sabia que uma das lembranças que eu guardava do meu tio era uma “dedeira” – um adaptador que ajudava a extrair um som mais acentuado dos bordões do violão.
Me perguntou naquele dia se poderia levar o violão e testar a dedeira. Consenti.
E naquele dia ouvi pela primeira vez um dedilhado perfeito de The House of the Rising Sun.
Não conhecia nenhum acorde no violão e o novo amigo, com o tempo, me ensinou a tocar “Meu Pequeno Cachoeiro”, em três acordes.
A amizade se desenvolvia e consequentemente os planos de montar uma banda também também cresciam.
Ele tinha um violão Tonante, boca de osso, como era conhecido – cujo timbre se assemelhava ao das guitarras sessentistas.
Ganhei de meu Pai, com uma certa dificuldade, um velho Di Giorgio, segunda mão, que tinha uma aparência sofrida, castigada pelo uso dos velhos seresteiros, mas uma sonoridade maravilhosa.
O vendedor conseguiu vender caro o violão moribundo, mas não enriqueceu com a façanha.
A formação
Paralelamente, Pedrinho, o irmão de Valdomir, se tornava um dos melhores baixistas da época.
Tocou em bandas como a Eclyps ( sim, essa era a grafia, e que ninguém se ouse a dizer que está errada!) e na Fluid’ Energy (sei lá o que é isso! Mas, esse era o nome, ou algo parecido) que era praticamente a mesma banda Eclyps, com um nome diferente.
Pedro era guitarrista e baixista virtuoso.
Não cantava bem, mas tocava MUITO, muito bem.
Para a bateria, o amigo Dilson Borges.
Dilson era o mais experiente de todos. Já havia trabalhado em bandas como a Doce Magia e, se não me falha a memória, na Legenda.
Apesar de intuitivo, improvisava tranquilamente do Rock ao Jazz. A marcação e as viradas perfeitas eram a sua marca.
Era então início da década de 1990 e a base estava formada. Mas, havia um porém… nenhum dos membros tinha dinheiro para comprar instrumentos, nem sequer usados!
A aquisição de instrumentos musicais não era tão fácil como é hoje.
Costumávamos treinar usando velhas caixas de repique e pratos para percussão ( emprestados de escolas) e os violões Tonante e Di Giorgio, na marcação de baixo e guitarra.
O repertório era vasto. Trazia desde clássicos dos anos 60 até o Pop do início dos anos 80 e 90.
As dificuldades
A inocência às vezes beira a burrice, como diziam os antigos da cidade.
Depois de muitos ensaios decidimos produzir uma fita demo. E a peregrinação atrás de quem pudesse emprestar alguns instrumentos começou.
Convenhamos, os músicos da época, que batalharam por seus instrumentos, ou que receberam de seus pais que podiam lhes bancar, tinham um ciúme especial e natural por estes, não era muito agradável emprestá-los a possíveis concorrentes.
Por isso a negativa costumava vir de modo disfarçado, no ditado quase popular: “Quem quiser também fazer um som, deveria também trabalhar para conseguir os seus próprios instrumentos”.
A Banda Acordes conseguiu um dia numa sede de uma bandinha, ainda início de carreira, a permissão para usar os instrumentos e a aparelhagem para gravar uma demo.
Dilson não estava presente e foi o melhor que poderia acontecer, pois durante os ensaios o dono dos equipamentos desregulava intencionalmente, causando sons extremamente desagradáveis.
O desapontamento só foi maior quando ele se dirigiu em particular ao Pedrinho nas seguintes palavras: -“Eu NÃO gosto de emprestar meus equipamentos. Quem quiser gravar ou fazer algo bom, que lute pra comprar os seus…” (Olha o dito quase popular!)
– Um NÃO mais objetivo doeria bem menos!
A peregrinação voltaria acontecer, desistir não era a opção. A demo deveria sair.
E assim se deu.
Sem instrumentos e sem lugar para tentar gravar uma fita apresentação. As coisas estavam realmente difíceis.
Três anos de lutas e quase sem esperança, nos dirigimos ao Senhor Adalberto de Freitas, o Bugaiau, o principal comunicador e incentivador da cultura da cidade, pedindo uma oportunidade de gravar umas canções em seu estúdio.
Contrariando as expectativas, o senhor Adalberto riu e concordou. Ficamos em êxtase!
Até esquecemos que não tínhamos os instrumentos!
A gravação no Studio Som da Cidade, do Bugaiau, começaria às 13 horas.
E então a romaria atrás de pessoas que talvez cedessem os benditos instrumentos, começou.
Zé da Leste, cedeu um pequeno teclado de 3/8, os meninos dos Bárbaros do morro emprestaram uma guitarra, a bateria não me lembro de quem Dilson conseguiu, mas era boa.
Consertamos, então, um velho e lindo contrabaixo vermelho, de sonoridade horrível, mas que funcionou, para a sessão.
O repertório trazia The Beatles, Procol Harum, Jovem Guarda e algumas canções românticas.
A sessão foi marcada pelo entusiasmo, pelos vocais de Juarez e com exceção do Dilson, nós três revezávamos nos demais instrumentos, de acordo com a música. O dia foi longo, cansativo e posso dizer, um dos melhores dias da minha vida – até então.
Ao sair dos estúdios do Som da Cidade, a realidade caiu como uma tempestade no inverno, gelada e triste.
O fim
O amigo que cedeu a bateria explicou ao Dilson, que não mais a emprestaria, e talvez estivesse correto, era difícil também para ele!
Os meninos dos Bárbaros continuaram dispostos a ajudar, essa sempre foi uma característica deles.
O dono do contrabaixo, ao saber do conserto, pediu de volta imediatamente…
Infelizmente, a vida testava a paciência da banda.
Com o tempo o Valdomir encontrou a mulher que se tornaria a mulher de sua vida, o Pedro voou para São Paulo, Dilson desistiu da Banda e quanto a mim, fui trabalhar nos Correios, lá em Santa Terezinha.
15 anos depois resolvi voltar e investir nos instrumentos e tocar um pequeno projeto com o meu baterista favorito: o Dilson.
Ele costumava rir e dizer: – “Mané, você não desiste nunca”
E a resposta: “Pois é, Mané…Como é que se desiste? A gente não pode desistir..”
Numa desses diálogos repetitivos, dos manés, a gente tocava Reflections of my life, do grupo The Marmalade.
E as horas se apressaram, os dias correram desesperados, para que em poucas semanas, um acidente vascular cerebral respondesse a pergunta: “Como é que se desiste?”
E o sonho de fazer a banda, acabava ali.
Na morte do irmão e melhor amigo.
As lembranças
Apesar de não ter sido, a Acordes foi uma boa Banda. Os ensaios eram engraçados e as canções soam maravilhosamente bem em minhas memórias afetivas.
Depois de 33 anos, de fato, um longo tempo, voltei a ouvir a algumas daquelas fitas.
Não chorei, apesar da vontade. Algumas lembranças me fizeram esquecer as dificuldades e extrair um pouco daquela alegria, do tempo em que o sonho era apenas fazer música.
Ao ouvir hoje as velhas gravações, um misto de emoções invadem a minha mente.
Vocais desencontrados, guitarras desreguladas, contrabaixos às vezes exagerado, as brincadeiras do Valdomir fazendo palhaçadas, conseguindo rir da falta de condições, o olhar desiluidido do Pedrinho imaginando o fim do projeto e o Dilson fazendo milagres numa caixa improvisada…
É verdade que hoje, a saudade é o melhor palco que existe, os subtons se transformam em estilos – e o pequeno público, na maior multidão.
A banda Acordes ainda vive quando lembro de quatro amigos, que mesmo contra os ventos e tempestades, estavam juntos planejando fazer algo diferente. O que de algum modo, fizeram.
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Infelizmente, a vida testava a paciência da banda…
Até esquecemos que não tínhamos os instrumentos!
Ele costumava rir e dizer: – “Mané, você não desiste nunca”
E a resposta: “Pois é, Mané…Como é que se desiste? A gente não pode desistir..”