A Cultura da Tortura: Da Inquisição às Investigações Policiais
Vamos refletir, neste post, sobre a cultura da tortura — seu surgimento, a figura dos falsos heróis e os paralelos entre práticas inquisitoriais e as caças às bruxas.
Enquanto alguns ainda tentam justificar a tortura como método de interrogatório, outros questionam sua eficácia e legitimidade. Afinal, haveria alguma justificativa real para sua aplicação?
A proposta aqui é simples: compreender, de modo direto, como essa cultura se perpetuou ao longo do tempo — inclusive em regimes como o nazismo — e como tantos torturadores se ampararam na ideia de que apenas “cumpriam ordens”.
Franz Stangl, comandante do campo de extermínio de Treblinka, disse certa vez em uma entrevista:
“Minha consciência está limpa. Eu estava simplesmente cumprindo meu dever…”
A Reação e o Clamor por Justiça
A reação imediata à barbárie é o clamor por justiça. A ausência de punição gera revolta.
É muito comum ouvirmos relatos de pessoas que decidiram “fazer justiça” com as próprias mãos, por meio de linchamentos.
Programas de televisão populares entre 1980 e 2010 exploravam crimes terríveis com sensacionalismo, apresentando histórias de forma a fazer o telespectador sentir a injustiça vigente no país.
Diante deste cenário, as pessoas clamam por mudanças.
Daí surgem falsos heróis, repetindo padrões históricos de séculos e séculos.
Na ânsia de “solucionar rapidamente” um crime e satisfazer o desejo de sangue da população, métodos cruéis foram aplicados em muitos inocentes.
Falsos Heróis
Por exemplo, moradores antigos da cidade de Iaçu, interior da Bahia, contam que um homem foi acusado de abusar sexualmente de uma jovem.
A multidão exigia justiça, mas o homem negava o crime.
Na ânsia de conseguir uma confissão, um sargento (ou cabo) da época aplicou as mais variadas torturas, desde espancamento à queima dos órgãos sexuais do acusado.
Para se livrar da tortura, o jovem admitiu a culpa, embora depois de castigado e solto voltasse a afirmar a sua inocência.
Infelizmente, as fontes não me deram mais detalhes quanto ao torturador, o torturado e o final da história.
Percebi que, embora tal ato tivesse acontecido há mais de 30 anos, os moradores ainda temiam represálias.
Realmente, é um caso chocante.
Mas, como disse, isso repete um padrão.
A História da Tortura e Suas Origens
A tortura, como método de obtenção de confissões e informações, remonta a períodos históricos em que instituições religiosas e civis recorriam a práticas extremas para manter a ordem e a fé.
Durante a Idade Média, a Inquisição se destacou como uma das principais instituições que normalizou a tortura em nome da busca pela verdade.
O desejo de erradicar heresias e bruxarias levou os inquisidores a empregarem métodos brutais para obter confissões, frequentemente utilizando torturas físicas e psicológicas.
Essa era viu a ascensão de técnicas cruelmente inventivas, que, em muitos casos, visavam não apenas à obtenção de informações, mas também à punição pública das vítimas.
O conceito de que a dor poderia forçar um indivíduo a revelar a verdade se tornou uma crença arraigada na sociedade da época.
Assim, a tortura não foi vista apenas como um meio, mas como um instrumento legítimo de justiça.
As práticas de tortura variavam de acordo com a região e a cultura, mas a intenção era global: garantir que as acusações fossem confirmadas, independentemente da autenticidade.
Instituições como a Igreja Católica e, posteriormente, alguns órgãos do Estado, utilizaram a tortura como forma de controle social, perpetuando um ciclo de medo e repressão.
A Caça às Bruxas
Um exemplo que ilustra bem esse fato é o julgamento das “bruxas” na Idade Média.
Quando o país passava por privações em longos períodos de estiagem, os moradores buscavam um culpado. Sim, culpado pelas estiagens!
Com isso, clérigos religiosos (que tinham muito poder) decidiam a quem culpar. E, neste caso, “a culpa era das bruxas”.
Mas quem eram as bruxas? Quando a medicina avançada da época era privilégio dos ricos (bem, não mudou muita coisa — medicina privada…), mulheres com experiência em realizar partos, fabricar remédios e cuidar da saúde da população eram consideradas bruxas.
Mulheres que cultuavam a natureza também eram denominadas bruxas.
Os clérigos, no uso do poder investido a eles, utilizavam os mais cruéis métodos de tortura, que iam de espancamentos a desmembramentos, decapitações, afogamentos e outras práticas bárbaras, para que elas admitissem culpa nos eventos e “entregassem” outras bruxas.
Muitas aceitavam a culpa apenas para se livrar das torturas.
Milhares de mulheres inocentes foram torturadas e assassinadas.
Além das necessidades religiosas, o uso da tortura se expandiu para o contexto civil, especialmente durante períodos de agitação política e revoltas populares.
Paralelos
Os mesmos clérigos que caluniavam e torturavam inocentes para alcançar a fama e riquezas se reuniam em suas igrejas para pregar o perdão de Deus. — O cúmulo da hipocrisia!
Investigadores policiais começaram a adotar esses métodos em suas práticas, relacionando a tortura à eficácia na resolução de crimes.
Nas várias transições sociais e políticas nos séculos seguintes, a prática se consolidou como parte das estruturas de poder, refletindo as ansiedades e as tensões da sociedade.
Com o passar do tempo, as críticas a essas práticas começaram a surgir, mas a história da tortura é um testemunho da sua profunda enraização nas instituições humanas.
Na Inquisição espanhola os torturadores castigavam as suas vítimas com o uso do berço de Judas, um aparelho usado para empalar lentamente as vítimas.
Durante este período quase 300 mil pessoas foram condenadas e 30 mil foram executadas.
A Tortura Durante o Período Militar
Durante os regimes militares na América Latina, a tortura foi utilizada como uma ferramenta sistemática de controle e repressão.
Governos autoritários, em um esforço para suprimir a dissidência, implementaram um vasto aparato de violência que incluía a prática da tortura em diversas formas.
As táticas empregadas eram não apenas brutais, mas frequentemente justificadas sob o pretexto de segurança nacional.
É essencial compreender os métodos utilizados, que variavam desde agressões físicas diretas, como espancamentos e eletrochoques, até formas mais psicológicas, como o isolamento extremo e a humilhação.
Essa combinação de táticas visava não apenas extrair informações, mas também desmantelar a resistência e fomentar um ambiente de medo.
O Caso dos Irmãos Naves
Poderíamos inserir neste contexto um típico caso de tortura policial, em Minas Gerais, durante a Ditadura Vargas.
O pouco conhecido caso dos irmãos Naves.
Um comerciante quase falido, de nome Benedito, desapareceu com um cheque de muito valor e foi dado como morto. Os primeiros a levarem o fato ao conhecimento da polícia foram os irmãos Naves.
As investigações não progrediam, e, para lidar com o caso e o clamor público, foi designado o infame Tenente Vieira, pois a população cobrava uma resposta.
O primeiro ato do “herói” foi acusar os irmãos de assassinato e submetê-los às mais terríveis e imagináveis torturas, que iam de espancamentos até o estupro da mãe dos acusados na presença deles.
Crimes policiais
Os crimes da polícia iam se acumulando, inclusive com a morte de um bebê de dez meses da família, que estava preso com a mãe, com o objetivo de conseguir confissões.
Com o extremo stress da prisão e das ameaças a mãe não conseguia lactar. A criança morreu por inanição
Os irmãos suportaram todas as torturas possíveis, assegurando a inocência, e mesmo assim foram condenados a muitos anos de prisão.
Uma nota importante é que foram julgados duas vezes e, devido à falta de provas e aos métodos criminosos do Tenente Vieira, foram inocentados.
Mas, devido à ditadura, ao privilégio policial e aos contatos, os homens foram condenados mesmo assim.
Benedito estava vivo!
Por bom comportamento, foram soltos depois de um bom período, para, logo depois, todos descobrirem que Benedito estava vivo — e muito bem vivo!
A multidão, então, queria linchar Benedito.
Por segurança, a polícia o manteve preso, mas mesmo assim jamais admitira o tratamento criminoso.
Devido às sequelas e traumas psicológicos, um dos irmãos morreu aos 36 anos.
Resumo: apesar de toda a injustiça e barbárie, a indenização que o Estado de Minas pagou, segundo relatos, não era suficiente nem mesmo para comprar uma casa.
Imagine compensar toda a desgraça que fizeram.
Alguns torturadores passam por crises de consciência.
Conflitos Mentais
Em muitos torturadores, o envolvimento em tais práticas pode gerar um profundo conflito interno, resultando em problemas de saúde mental e em uma dessensibilização à violência.
Por outro lado, aqueles que foram submetidos à tortura frequentemente enfrentavam traumas duradouros que continuavam a influenciar suas vidas mesmo após a libertação.
O trauma envolvido não se limitou às vítimas diretas; familiares e comunidades também sofreram como consequência do clima de repressão e medo.
A cultura da tortura, portanto, alimentou um ciclo vicioso de controle social, onde a ideia de que a força era necessária para manter a ordem se disseminou amplamente.
Essa mentalidade foi sustentada por uma retórica que apresentava as práticas de tortura como indispensáveis para o combate ao terrorismo e à subversão, levando assim a uma banalização da violência.
O legado desta era de tortura ainda ressoa nas sociedades contemporâneas, levantando questões sobre direitos humanos e a legitimidade das ações estatais.
As reflexões sobre este período são cruciais para entender como a tortura pode ser institucionalizada e os efeitos devastadores que isso tem sobre a sociedade como um todo.
A Ineficácia da Tortura como Método de Investigação
Relatos têm demonstrado consistentemente a ineficácia desse método na obtenção de informações verídicas.
Muitas vezes, o que se observa é que indivíduos submetidos à tortura acabam confessando crimes que não cometeram, apenas na esperança de escapar da dor e do sofrimento infligidos a eles.
Essa dinâmica revela uma falha intrínseca da tortura como ferramenta de investigação.
Pesquisas realizadas por psicólogos e especialistas em justiça criminal mostram que indivíduos sob intensa pressão psicológica e física podem não apenas fornecer informações falsas, mas também incriminar outros, levando a condenações erradas.
Alguns estudos destacam que a coação extrema não garante a veracidade do que é dito, mas, em contrapartida, gera um ambiente onde as vítimas sentem que a única alternativa é a submissão, ainda que isso implique em confessar falsamente.
Busca por um culpado Versus Busca pela verdade
Além disso, a busca por um culpado muitas vezes prevalece sobre a busca pela verdade nas investigações policiais.
Essa mentalidade pode levar autoridades a priorizar resultados rápidos em detrimento de métodos investigativos mais rigorosos e éticos.
O uso da tortura se transforma, então, em uma solução aparente, mas inadequada, em situações onde o devido processo e a investigação detalhada deveriam ser a norma.
Este foco no resultado emocional, em vez de na reputação da verdade, compromete a integridade do sistema de justiça, afastando-o de suas funções essenciais.
Portanto, a tortura não apenas falha como método de busca pela verdade, mas também perpetua injustiças, atormentando os inocentes e distorcendo a percepção da realidade no que tange ao crime e à punição.
Reflexões sobre a Cultura da Confissão e Suas Implicações
A cultura da tortura continua a gerar repercussões significativas na sociedade contemporânea.
Desde as práticas da Inquisição até os métodos utilizados em investigações policiais modernas, a ideia de que “o fim justifica os meios” permeia o imaginário coletivo, influenciando a forma como a justiça é administrada e percebida.
“É um fato: os criminosos continuam a torturar. O mais chocante é ver os métodos repetidos por aqueles que deveriam proteger — o que se esperar?”
— R. Ramos, Poeta e Professor
Este conceito, que subverte os princípios éticos fundamentais, reflete uma busca incessante por resultados, muitas vezes à custa da dignidade humana e dos direitos individuais.
As implicações dessa cultura são vastas e complexas.
A busca pela confissão, seja em um contexto religioso ou jurídico, frequentemente resulta na normalização da violência como método de obtenção de provas.
Essa prática não apenas perpetua o sofrimento infligido às vítimas, mas também enfraquece a credibilidade do sistema de justiça.
A Busca de um Culpado e a Sociedade
Quando as confissões são obtidas por coerção, o espaço para a verdade genuína e a responsabilização justa é comprometido.
A incerteza acerca da veracidade das informações obtidas através de tortura gera um ciclo vicioso de impunidade e desconfiança nas instituições.
Além disso, a persistência dessa mentalidade no presente revela uma necessidade urgente de reavaliação das técnicas de investigação.
As sociedades devem se comprometer a erradicar essas práticas desumanas, enfatizando métodos que respeitem os direitos e a dignidade do indivíduo.
A promoção de abordagens mais humanas e eficazes, que priorizem a empatia e a verdade, é crucial para a reconstrução da confiança nas instituições.
A narrativa da tortura deve ser substituída por uma cultura de justiça que valorize a vida e a verdade, garantindo que o sofrimento humano nunca mais seja visto como um preço aceitável para a obtenção de resultados.
A Psicologia do Torturador
Estudos revelam que torturadores frequentemente desenvolvem uma “dupla consciência”:
-As atrocidades são justificadas como dever funcional enquanto sucumbem ao alcoolismo e à depressão.
O Tenente Vieira operava num sistema que premiava a eficiência violenta, onde promoções dependiam de resultados — tal como inquisidores ascendiam na hierarquia eclesiástica conforme o número de hereges condenados.
O fantasma de Vieira ainda assombra quando se analisam operações policiais recentes, como na Baixada Fluminense em 2024: 80% das vítimas eram negras.
O mesmo padrão se repete na Bahia e em São Paulo, onde a maioria das vítimas da violência policial são pobres e pretas.
A auto-absolvição e autopurificação
Em muitos casos, a religião tem sido usada como forma de autoabsolvição ritualística — não como expressão de arrependimento genuíno.
Seguindo essa linha, é comum que policiais envolvidos em torturas ou atos de violência se convertam ao evangelho em busca de autopurificação.
Nessas situações, o acolhimento de algumas igrejas pode funcionar, simbolicamente, como uma “lavanderia da alma”.
É claro que isso não significa que todos os torturadores que aderiram à fé o fizeram por razões egoístas ou continuaram a se destacar nos púlpitos.
Muitos o fazem por fé sincera e pela esperança de recomeçar.
Tome-se como exemplo o caso de Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS, que se converteu, escreveu um livro confessando crimes e participou do documentário Pastor Cláudio:
A igreja serviu, neste caso, de manto para o torturador.
Guerra teve uma morte tranquila — privilégio raramente concedido a pobres no Brasil — sem jamais ter revelado remorso pelas pelas vidas que incinerou.
Conclusão
Os fins justificam os meios…?
Segundo o Pastor Cláudio, o torturador, com a anistia muitos militares antes torturadores passaram a “prestar segurança” a bicheiros.
Bem, se apenas um inocente fosse torturado e morto, já haveria um bom motivo para questionamento, mas o fato é que milhões de pessoas inocentes foram torturadas e mortas, nas mãos de sádicos disfarçados de heróis.
Os pensamentos mudariam se nossos filhos inocentes fossem vítimas de tais atrocidades, não é verdade?
Tentar justificar a tortura é dar suporte ao argumento dos nazistas, que replicaram e criaram novos meios de torturas, inimagináveis mesmo aos inquisidores.
O Projeto Armazém da Memória indica que 68% dos torturadores da ditadura brasileira identificados nunca foram processados, e alguns ocupam cargos eclesiásticos.
“Minha consciência está limpa. Eu estava simplesmente cumprindo meu dever…”
Franz Stangl, nazista, responsável pela morte de 1 milhão de pessoas.
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