O Último Encontro dos Velhos Seresteiros
Havia uma barraquinha próxima ao muro da igrejinha, na praça que hoje é conhecida como a Praça dos Ferroviários. Era o ponto de encontro dos velhos seresteiros!
Chegavam aos poucos, cada um trazendo o seu próprio instrumento: violões, pandeiros, cavaquinhos… e enquanto a cidade se preparava para dormir, a melodia ditava o ritmo dos sonhos.
Ser menino era meio complicado.
Eu ficava à distância, sentado à porta da minha casa, observando cuidadosamente a entonação e decorando quase todo o repertório.
A “Morena Bela do Rio Vermelho” se envaidecia, mas não podia ouvir o clamor de “Fica comigo esta noite” ou a angústia apaixonada de “Onde estás agora?”
Seu Júlio puxava o coro: “Hoje que a noite está calma…” e, num Sol Maior perfeito, as vozes se encaixavam, dando à noite a impressão de harmonia entre lua, estrelas e apaixonados.
“Maria Helena” era a verbena daquela noite. “Meu Grito” era a oportunidade de desabafar entre “Os Verdes Campos da Minha Terra”. Às vezes, os músicos cansavam. Então, Seu Júlio, amigavelmente, trazia água para os amigos.
Prontinhos, agora hidratados, voltavam risonhos e com muito mais empolgação e emoção para cantar.
Entre “Negue”, “Ronda” e “Vou Sair Para Buscar Você”, chegava a hora de partir. E cantavam “A Volta do Boêmio”.
Era uma reunião de amigos.
Era um show de amigos para amigos.
O Fim de Uma Era
Esses encontros aconteciam apenas nos finais de ano. A cada ano, porém, o número de velhos amigos da serenata diminuía.
Eram quase trinta no início. No último encontro que pude contemplar, restavam apenas seis.
Músicos passam. Músicos morrem.
Por fim, Seu Júlio também faleceu. As serenatas acabaram.
A barraca foi demolida e, em seu lugar, construíram uma linda pracinha. Não há marcas ou lembranças daquele terreno onde a velha barraca resistia entre velhos arames.
Novos e belos músicos nasceram, mas jamais saberão o que era sentar entre amigos, rir das próprias falhas, cantar no mesmo tom sem competir. Eles não compreenderão como é bom cantar junto, dividir o prestígio, a emoção, o momento. Assim como deve ser a arte.
A Celebração da Amizade
Talvez a lua não provoque mais a mesma emoção. As pessoas mudam com o tempo e podem pensar que seria tolice cantar sob noites enluaradas.
Mas os seresteiros sabiam: não era a lua em si. Era a celebração da amizade, do amor, em belas e antigas canções. Eles sabiam que um dia tudo aquilo passaria e, por isso, precisavam se encontrar. A lua era apenas um pretexto.
Que os novos amigos encontrem sempre um motivo para se reunir, para celebrar. A vida passa.
Hoje, depois de tanto tempo, me pergunto: “Os velhos, incansáveis seresteiros quase não paravam. O que será que tinha naquela água que Seu Júlio servia?
Gilson Cruz
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