Por muito tempo, as praças das pequenas cidades do interior nordestino ficavam lotadas de homens que se aventuravam em caminhões desconfortáveis ou ônibus em péssimas condições para o trabalho nas fazendas de corte de cana no Sudeste do Brasil.
Se expunham ao trabalho pesado, alguns morriam picados por cobras venenosas, outros penavam de saudade.
A bebida alcoólica fazia companhia ao sofrimento de muitos.
O Sudeste era símbolo de progresso, e o Norte e Nordeste eram vistos como símbolos de abandono e atraso.
Mas, como se deu isso?
A herança colonial
Esta é uma das heranças do período colonial, em que a exploração do território brasileiro foi feita de forma predatória e concentrada em ciclos econômicos regionais (a cana-de-açúcar no Nordeste, o ouro em Minas, o café no Sudeste).
À medida que o ciclo do café cresceu, especialmente no século XIX, o Sudeste passou a ter maior influência política e econômica.
Era onde estavam as elites econômicas e políticas.
Durante o século XX, principalmente com Getúlio Vargas e, depois, Juscelino Kubitschek, o Brasil passou por uma rápida industrialização — mas quase toda concentrada em São Paulo e Rio de Janeiro.
Essas regiões já tinham melhor infraestrutura, mão de obra disponível e acesso aos portos. Investimentos em energia, transporte e indústria foram canalizados para lá, ignorando o potencial de outras regiões.
Era mais rentável investir onde já havia infraestrutura.
Os grandes centros de decisão, como o Congresso, os bancos, os grandes jornais e empresas, sempre estiveram no Sul e Sudeste.
Isso criou uma espécie de “círculo vicioso”: onde há mais riqueza, há mais poder, e onde há mais poder, mais recursos são direcionados.
O descaso com o Nordeste
O Nordeste passou a ser visto por parte das elites políticas e econômicas como “problema social”, e não como região estratégica.
As políticas públicas geralmente foram emergenciais ou assistencialistas, como frentes de trabalho ou ações contra a seca — sem atacar as causas da desigualdade.
Havia preconceito e marginalização histórica contra o Nordeste.
A falta de investimentos no campo nordestino, somada às secas e ao abandono, forçou milhões a migrar para o Sudeste, onde acabavam vivendo em condições precárias nas periferias urbanas.
Isso contribuiu ainda mais para a concentração populacional e a sobrecarga dos serviços nas grandes cidades — e o ciclo se repetia.
O modelo de desenvolvimento era concentrador e excludente.
Triste Partida
Neste contexto, Patativa do Assaré compôs uma das mais belas músicas do cancioneiro brasileiro: Triste Partida.
“Setembro passou,
Outubro e Novembro,
Já tamo em Dezembro,
Meu Deus, que é de nós?
Assim fala o pobre
Do seco Nordeste,
Com medo da peste,
Da fome feroz…”
Embora Triste Partida não mencione diretamente o governo, o pano de fundo da canção é, sim, profundamente político — ainda que de forma sutil.
A seca é retratada não apenas como fenômeno natural, mas como uma tragédia social e humana agravada pela ausência do Estado e pela falta de políticas públicas eficazes para o povo nordestino.
A seca, constante no sertão, transforma-se em símbolo da negligência histórica com o Nordeste.

Luiz Gonzaga
A fome, o êxodo, a desesperança — tudo isso poderia ser amenizado com ação governamental, mas o que se vê é o abandono.
A canção narra o drama do sertanejo que deixa tudo para trás em busca de sobrevivência.
Isso é consequência direta da falta de apoio e estrutura, de crédito, de acesso à terra, de políticas de convivência com o semiárido.
O silêncio do autor sobre o governo, nesse caso, fala alto, sugerindo que o sofrimento é tão prolongado e recorrente que já nem surpreende mais.
A voz e a Asa Branca
O cantor que deu voz à canção foi Luiz Gonzaga, o autor de, entre muitas belas canções da música, Asa Branca.
A música Asa Branca, composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em 1947, é uma das canções mais emblemáticas da música popular brasileira.
Ela retrata o drama da seca no sertão nordestino e a migração forçada dos sertanejos em busca de melhores condições de vida.
A letra é narrada por um sertanejo que se despede de sua terra natal devido à seca devastadora.
Ele menciona a ausência de chuvas, o sofrimento dos animais e a partida do pássaro asa-branca — símbolo da aridez do sertão.
O protagonista também se despede de sua amada, prometendo retornar quando a chuva voltar e a terra voltar a florescer.
Asa Branca é, portanto, uma canção que representa o Nordeste profundo, seu povo, sua dor, sua força e sua esperança.
É considerada um verdadeiro hino do sertão brasileiro.
Rei do Baião
Entender e expressar os sentimentos de um povo são prerrogativas de um Rei, e embora muitos o fizessem pela cultura nordestina, nenhuma voz soou tão alto quanto a de Luiz Gonzaga – O Rei do Baião.
O conhecimento da história pode ajudar a entender as raízes do preconceito e da ignorância e trazer à luz a luta de um povo que expressou a sua história e a sua luta por meio de trabalho e arte.
Vamos à história do Rei do Baião:
Luiz Gonzaga – O Rei do Baião
Luiz Gonzaga do Nascimento nasceu em 13 de dezembro de 1912, na Fazenda Caiçara, povoado do Araripe, em Exu, no sertão de Pernambuco.
Filho de Januário José dos Santos, sanfoneiro e consertador de instrumentos, e Ana Batista de Jesus, conhecida como Mãe Santana, Luiz foi batizado em 5 de janeiro de 1920 na matriz de Exu.
Seu nome foi escolhido em referência ao dia de Santa Luzia (13 de dezembro), e o sobrenome “Nascimento” foi inspirado no mês em que se celebra o nascimento de Jesus.
Desde pequeno, Luiz demonstrava fascínio pela sanfona do pai. Ajudava na roça, mas preferia ouvir Januário tocar.
Com o tempo, aprendeu o instrumento e passou a animar festas da região.
Aos 13 anos, comprou sua primeira sanfona com ajuda do coronel Manuel Aires de Alencar e suas filhas, que também lhe ensinaram a ler e escrever.
Sua primeira apresentação remunerada foi em um casamento — momento em que sentiu que a música era seu destino.
A fuga de casa e o Exército
Aos 17 anos, Luiz fugiu de casa após um romance proibido e uma surra da mãe.
Foi para o Crato, no Ceará, vendeu sua sanfona e seguiu para Fortaleza, onde alistou-se no Exército em busca de uma vida melhor.
Durante a Revolução de 1930, percorreu diversas regiões como corneteiro.
Em Minas Gerais, comprou uma sanfona nova e começou a ter aulas com o mestre Domingos Ambrósio.
Teve suas primeiras experiências públicas tocando em clubes, antes de ser transferido para Ouro Fino.
Em 1939, deixou o Exército.
Carreira no Rio de Janeiro
Sem notícias da família havia nove anos, permaneceu no Rio de Janeiro à espera de um navio de volta para Pernambuco.
Um colega do Batalhão de Guardas sugeriu que ele tentasse ganhar a vida tocando sanfona pela cidade.
Luiz começou a tocar nos bares do Mangue, nas docas e nas ruas. Logo passou a se apresentar em cabarés da Lapa.
No início, seu repertório era composto por tangos, fados e valsas — exigência do público.
Tentou a sorte nos programas de calouros de Silvino Neto e Ary Barroso, mas tirava notas baixas.
Em 1940, um grupo de estudantes cearenses o incentivou a tocar músicas nordestinas.
Com a música “Vira e Mexe”, ganhou nota 5 e o primeiro lugar em um concurso de rádio.
Sua habilidade chamou a atenção de Januário França, que o convidou para acompanhar Genésio Arruda em uma gravação.
Primeiras gravações e parcerias
O desempenho foi tão bom que Ernesto Morais, diretor artístico da RCA, convidou-o para gravar como solista.
Em 14 de março de 1941, Luiz Gonzaga gravou seus dois primeiros discos.
Nos anos seguintes, gravou cerca de 70 músicas, muitas instrumentais.
Em 1945, lançou seu primeiro disco como cantor, com a música “Dança Mariquinha”, marcando o início de sua carreira vocal.
Parcerias e o sucesso do baião
Em busca de um parceiro letrista, Luiz conheceu o advogado cearense Humberto Teixeira, com quem formou uma das duplas mais importantes da música brasileira.
Juntos lançaram sucessos como “Baião”, “Asa Branca”, “Assum Preto”, “Paraíba” e “Kalu”.
As músicas eram acompanhadas por sanfona, triângulo e zabumba — a formação clássica do forró pé de serra.
“Asa Branca”, lançada em 3 de março de 1947, se tornou um marco.
A canção, de caráter folclórico, retrata o drama do sertanejo diante da seca e foi gravada por artistas como Dominguinhos, Sérgio Reis e Baden Powell.
Retorno ao Nordeste e novos parceiros
Após anos longe de casa, Luiz retornou ao Recife e passou a se apresentar nos programas de rádio da capital. Com trajes típicos — gibão de couro, chapéu de vaqueiro e óculos Ray-Ban —, reforçava sua identidade nordestina.
Em 1949, levou a família para o Rio de Janeiro e conheceu o médico e compositor Zé Dantas, iniciando uma nova e frutífera parceria, que rendeu canções como “Vem Morena”, “Cintura Fina”, “A Dança da Moda” e “A Volta da Asa Branca”.
Entre 1948 e 1954, morou em São Paulo e viajava o Brasil fazendo shows.
Tornou-se um dos artistas mais populares do país, levando os ritmos do sertão para as grandes cidades.
Em 1980, Luiz Gonzaga cantou para o Papa João Paulo II, em Fortaleza. Apresentou-se também em Paris, a convite da cantora Nazaré Pereira. Recebeu o prêmio Nipper de Ouro e dois discos de ouro com o álbum “Sanfoneiro Macho”.
Vida pessoal
Luiz Gonzaga teve um relacionamento com a cantora e dançarina Odaléia Guedes dos Santos, com quem teve um filho, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha, em 1945.
Odaléia faleceu quando o menino tinha dois anos.
Em 1948, Gonzagão casou-se com Helena Neves Cavalcanti, que o ajudou a criar Gonzaguinha. O casal também adotou uma menina, Rosa Gonzaga.
Luiz Gonzaga morreu em 2 de agosto de 1989, no Recife, deixando um legado inestimável para a música brasileira.
Foi um dos artistas mais importantes da história da MPB e verdadeiro porta-voz da cultura nordestina.
Seus sucessos continuam vivos na memória do povo e influenciaram gerações de músicos, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Raul Seixas e Geraldo Vandré.
Será eternamente lembrado como o Rei do Baião, aquele que deu voz, forma e ritmo ao Sertão — e transformou a dor de sua terra em música eterna.
O conhecimento da história pode ajudar a entender as raízes do preconceito e da ignorância e trazer à luz a luta de um povo que expressou a sua história e a sua luta por meio de trabalho e arte.
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Baião: A Dança Nordestina de Raiz
Fonte: Wikipedia