Os helicópteros passavam acima das casas e Gualber abraçava suas três filhas na sala, o único local protegido por uma laje, próximo à parede aparentemente blindada. A ideia de blindar um dos vãos veio de Marisa, pois os traficantes às vezes trocavam tiros com policiais nas proximidades. As filhas pequeninas, já não eram mais inocentes; as idas para a escola eram exercícios de amadurecimento.
Mas agora seria diferente.
Parecia que desta vez o governo cuidaria do povo dos morros. Haveria uma hora em que poderiam sair e, quem sabe, usufruir um pouco de paz na pracinha mais acima. A música o acompanhava em seus exercícios diários e nas aulas que mais pareciam jam sessions, de tão agradáveis que eram.
Bom músico, Gualber desistira do sucesso, pois para ele, não havia algo que fizesse sentido na atual música pasteurizada. Os seus sonhos de sucesso no entretenimento foram transferidos para as aulas de música que dava.
O combate se intensificava à noite e, na manhã seguinte, o governo se gabava de sua bravura por enfrentar o crime organizado em longas entrevistas.
Até que um dia… Enfim, os jornais noticiavam a fuga dos bandidos. A notícia era transmitida como espetáculos para gringos se sentirem motivados a turbinar o turismo local. Enfim, a televisão noticiava a paz.
E depois de muitos meses, amedrontado, Gualber poderia então sair sem medo, com seu instrumento, para mais um dia de aula.
Abraçou Marisa, beijando ternamente a sua testa. Observou o transporte escolar que levava cada uma de suas três filhas, que acenavam alegremente nas poltronas intermediárias.
Olhou para a ladeira e o muro branco que vinham antes da rodovia, que teria que passar até o ponto de táxi a 300 metros à esquerda.
Gualber visualizou o muro, sentiu a paz e, em vez de um case, levou a guitarra num estojo simples, preto. Chegando ao muro, sentiu a paz e, olhando para os dois lados, colocou o suporte da guitarra nas costas, sobre os ombros.
E de longe, aqueles que trariam a paz não viam um professor portando um instrumento; viam um negro e, em seus subconscientes, negros eram perigosos – e aquilo seria certamente uma arma.
E agindo como os mesmos marginais que combatiam, atingiram o alvo.
E lá no meio da pista, Gualber se perguntou por segundos: “Por quê?”
Mas jamais irá entender o que já sabia…
E a paz noticiada habitava a mente de Gualber, enquanto os helicópteros levavam notícias para a zona sul.
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