O que mais tortura um escritor se não a falta do que escrever?
Bem, quando se refere a este trabalho até a falta de inspiração é objeto de escrita.
Me fogem ideias, me faltam palavras..
Poderia falar sobre aquele jovem senhor que cuidava de sete cachorrinhos e que diariamente repetia a Deus que ficaria rico. Que seria um dia cantor de músicas internacionais e ficaria famoso e ganharia também numa dessas loterias da vida.
As estações pareciam longas e intensas…
O fato é que todos os dias, antes mesmo de o sol sorrir, ele, acompanhado de seus amiguinhos, revirava os recicláveis para lotar o seu carrinho e extrair das sobras dos restaurantes o alimento dos pequenos companheiros.
Alguns poucos anos se passaram e num desses invernos os cachorrinhos vagavam pelas ruas, procurando amizade e consequentemente um pouco de alimento…
Cães também comem, é verdade!
O amigo dos cães desaparecera! – Ele abandonara os seus amiguinhos.
Segundo alguns diziam: “A vida lhe sorriu”.
Diziam alguns, que aquele homem, sem nome, estava agora bem de vida.
“Que Deus lhe ouvira as preces…”
Que bom! Mas, não diz isso aos cachorrinhos… estavam sozinhos agora!
Agora que as noites de inverno passavam, os bares da cidade passaram a contar com música ao vivo.
A praça lotada, pessoas felizes aplaudiam a linda voz do cantor que sonhava em um dia, poder mostrar seu talento a públicos maiores.
E depois de horas, a apresentação chegava ao fim.
Namorados passeavam a contemplar um último brilho da lua e quem sabe levar um último beijo de boa noite.
E enquanto todos se deslocavam para suas casas, satisfeitos, não percebiam os mesmos cães deitados ao redor do que seria um novo amigo.
As noites de inverno não são românticas, nem mesmo nos nordestes do Mundo.
Por isso, as pobres criaturas envolviam agora o seu Novo dono, alguém de olhar triste e pele sofrida, que para fugir da vida ou das memórias, adormecia no meio da praça e despertava como o auxílio daquilo que o inebriava.
Há alguém que não leve consigo um passado? Alguns o temiam, acreditavam ser um fugitivo –mas, todos são fugitivos de algum modo!
Não falava muito sobre família, amigos – nada.
Apenas dizia ao Carteiro que esperava um cartão, que viria de um antigo lugar, chamado Mimoso. Sem falar muito mais a respeito.
Diziam nas ruas que conversar com bêbados ou cuidar deles é trabalho para heróis e que nem mesmo ambulâncias seriam deslocadas quando se tratasse de acidentes com eles.
Línguas maldosas!
Mas, o fato é um dia o encontrei dormindo, cansado de esperar o movimento lento das coisas e enquanto ele dormia, coloquei em suas mãos um desses lanches que não sustentam um dia inteiro, mas que era bem melhor que o álcool.
É estranho perceber que hoje, não consigo lembrar o nome dele.
Mas, num dia desses cansado de viver esperando, por ninguém sabe exatamente o quê, seu coração decidiu parar…
Aqueles que criticavam o seu modo de vida…estavam atônitos…de certo modo, tristes.
Me faltam palavras para descrever o que senti. Sei que a vida lhe foi breve.
Quando percebo como alguns sobrevivem com tão pouco, sinto a vergonha alheia de ver como alguns estão dispostos a prejudicar centenas de outras pessoas em fraudes para fins e atitudes egoístas.
Não ouvi anúncios de sepultamento. Alguém talvez chore a sua falta e lamente a sua vida ausente.
O universo porém, continuará frio e inóspito. Não se apagarão estrelas por ele…
O verão chegaria há apenas quatro dias…e novamente os pets andariam sozinhos… nas mesmas praças.
Enxotados e maltratados, como pessoas ignoradas.
Me tortura a alma, não saber o que dizer.
Gilson Cruz
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Comentário (4)
Nilmar Chaves| 2 de abril de 2024
Me lembro da ocasião. Inclusive me senti muito mal com o descaso, pois o homem, que agora tinha se tornado um cadáver, ficou por horas e horas no mesmo lugar, do mesmo jeito que tinha adormecido. Mas fiquei ainda pior quando passei novamente pela praça e os seus leais amigos, os cachorrinhos, ainda mantinham sua lealdade, mesmo aquele homem estando sem vida. Eu confesso que não contive as lágrimas
Gilson Cruz| 2 de abril de 2024
Obrigado, Nilmar.
Gilmar Chaves| 7 de abril de 2024
Aquela imagem que também presenciava daquele corpo imóvel e sem vida me deixou bastante atônito, pois, não pronunciava palavras por não saber o que dizer, apenas sentir!
Muito chocante a cena do fiel amigo ao redor do corpo. Amo cães, e por esse motivo sofri com a inocência e fidelidade daqueles animais que, mesmo tendo um dono adormecido definitivamente, eles jamais desistiriam dele!
Embora a sociedade invisibilisava aquele homem, os seus cães o enxergavam nitidamente todos os santos dias. Com certeza, ainda sentem falta do seu dono.
Gilson Cruz| 8 de abril de 2024
Realmente, Gilmar, foi uma cena chocante. Seu comentário conseguiu sintetizar a essência do que aconteceu. Excelente!