Sabe aquelas histórias que só acontecem na infância e que você jamais esquece? Muitos anos se passaram e hoje, a minha mente cansada, se confunde sobre o que foi real e o que foi imaginado, na busca de um sentido.
Lembrei hoje de uma velha amizade… velha como o tempo.
Na minha infância, não conheci ninguém tão arisco quanto o Mundinho.
O moleque era desconfiado.
Ninguém sabia ao certo se era por causa de seus pais que não eram lá muito dados ao diálogo ou devido ao uso inovador do chinelo ou do cipó das folhas de araçá que costumavam soar como os sons dos blocos afros nas pernas e costas do menino ao menor sinal de travessura.
Eles eram pessoas horríveis!
“Ah! mas, naqueles dias, todos os pais eram meio carrascos” – você talvez argumente. – Era comum, mas não precisavam ser assim.
Mas, apesar dos pais, o mundo parecia bom e pequeno para ele. E embora, eu tivesse apenas nove anos de idade ( a mesma idade que ele), eu já sabia que quando ele aparecia lá em casa, pouco depois do almoço, alguma coisa ruim tinha acontecido!
A gente costumava compartilhar o pouco que tinha.
Apesar das dificuldades que a pobreza, a falta de compreensão e a violência dos pais traziam, Mundinho era um bom amigo.
Nas brincadeiras de correr ninguém lhe alcançava. O pobre batedor de latas sabia que advinhar onde se escondia o pequeno arredio era missão quase impossível. Se escondia nos lugares mais improváveis.
Sob os bancos da praça, no topo dos postes ou das árvores mais altas não havia lugar impossível para ele.
E eu, nas minhas limitações, costumava dizer: “Meu irmão, eu queria ser como você. O carinha mais rápido da cidade. Você pode ser atleta, policial, o que quiser ser quando crescer…”
Mundinho ria. Alguém o admirava e isso acalentava a dor de ser chamado de “inútil, de preguiçoso, de erro de Deus” ou coisas assim.
Num daqueles dias, pouco depois da hora do almoço, o Raimundo aparecia novamente lá em casa. Dizia que não mais voltaria pra casa, pois seus pais iriam tirar-lhe a vida.
E naquela tarde, ele parecia mais amedrontado que o normal.
Os pais dele jamais lhe deram presentes, jamais lhe abraçaram.
Não percebiam que as marcas das surras estavam agora gravadas na pele, como tatuagens na alma.
A gente acreditava que naquele tempo não existia lei. Os policiais pareciam cavalos fardados; eles não hesitavam em dar os chamados cascudos e mandar os pivetes ( termo usado na época) de volta à “proteção” do lar.
E como de costume, conversávamos sobre a dor, a perspectiva de um futuro melhor e ele dizia que um dia casaria com a Cimara, a menina mais dócil da escola; que teria filhos e mostraria ao pais “como se criar uma criança”.
Engraçado que as palavras crianças e criação têm a mesma origem, uma conexão etimológica.
Ambas vêm do latim creare, que significa criar, produzir…
Creantia, latim para criança, significa: criado, produzido e a palavra “criação” , vem do latim Creatio, que significa ato de criar ou produzir.
-Mas, existe algo mais redundante do que as conversas de crianças?
Ele dizia também que o mundo seria pequeno, pois conheceria tudo!
Papo cabeça, pra alguém tão jovem…
E após choros e planos, ele já estava pronto para mais uma de suas artes nas brincadeiras de fim de tarde.
A lata voava para longe, o batedor de latas corria para apanhá-la, enquanto todos se escondiam…
O Tufão pulava o muro da igrejinha, o Pinheiro se escondia atrás das barracas e o Alberto em cima da casa do seu Miguel. É impossível lembrar onde se escondiam todos os amigos naquela noite.
Lembro apenas que o Paulinho, da monareta, encontrou a todos. Exceto um. – O Mundinho
E a busca pelo moleque se tornou uma peregrinação. Procuramos em todas as árvores e postes possíveis. Vasculhamos todos os bancos da cidade.
Não buscamos nas nuvens, esquecemos de olhar para o céu. Talvez devêssemos procurar mais…
Era tarde, desistimos da procura.
“Ele já deve estar em casa e dormindo” – todos diziam.
“Quando a gente encontrar, ele vai ver… vamos mudar as regras do jogo. Assim não tem graça!”
Voltamos todos para nossas casas.
Confesso que não dormi em paz naquela noite.
A imagem do Mundinho naquela tarde dizendo que ganharia o mundo, que iria embora, desapareceria, me atormentou em cada segundo daquela noite.
Enfim, era quase manhã quando consegui adormecer.
Era, então, Sete da manhã do dia seguinte e meu Pai me alertava que não deveria faltar as aulas, se eu quisesse ser alguém no futuro.
Na escola, os colegas estavam alegres como de costume. A professora ainda não havia iniciado a chamada. Cymara e seus pequenos cabelos ruivos me acenavam, Enivan me desafiava mais uma vez para mais uma sabatina, Matemática.
O desgraçadinho gostava de bater nos colegas!
Nunca teve o prazer de me bater.
Zé Luís ria ao lado do Walter contando as mesmas piadas do dia anterior, enquanto Jacinta e Estela se sentavam nas últimas cadeiras, do lado esquerdo.
A sala estava barulhenta naquele dia.
Da porta, não vi o Mundinho entrar na sala vizinha.
Ao meio dia, enquanto tentava voltar para casa, Juscélio, o cavalão da turma, como era conhecido, ameaçava me bater. Por não ir com a minha cara…
Talvez o “cavalão” se devesse ao fato de todos na sala serem baixinhos e terem em média nove anos e ele ter quinze, nada acontecia a ele, talvez por mera coincidência, ele fosse sobrinho da diretora.
Me desviei das provocações e naquele dia passei em frente à casa do Mundinho.
Tudo estava fechado. A rua estava silenciosa e não havia burburinhos por lá.
“Uma hora ele passa lá em casa” – Pensei.
E naquele dia, o meu amigo não passou.
Minha cabeça infantil jamais pensara tanto! “Ele foi conhecer o mundo”; “Os pais foram embora”; “Ele fugiu dos pais”; “Ele não sofrerá mais…”
Me consolava saber que o amigo teria uma nova chance.
E ninguém falava mais disso!
E numa dessas quintas-feiras, desta vez de Primavera, quando as águas adiantaram o seu curso para chegar ao rio da cidade em chuvas temporãs nas cidades vizinhas, os pescadores se assustavam com a possibilidade do desastre.
Não como aqueles dos Dezembros, quando as águas invadiam as ruas da cidade levando tudo o que não estava amarrado para o meio do Rio.
Desta vez, parecia que um pequeno animal, um porquinho talvez, estava preso nas pedras, sob as águas turvas.
Se organizaram em grupos até que de repente, o susto, o choro…o grito. Não era um animal.
Era o corpo de um menino. Pequeno, a camisa tinha uma tonalidade abóbora e o short era vermelho.
Poucos o conheciam. E os pais não estavam lá, naquele momento.
Na última Terça, ele vestia roupa com as mesmas cores.
Mas, não podia ser o Mundinho.
Ele era muito esperto para estar ali, preso entre as pedras…
Ele sabia nadar. O lugar dele era o mundo!
Ele era rápido como os raios nas tempestades. Ninguém alcançava ele!
E enquanto enrolavam o pequeno corpo num leçol branco, a realidade caía certa como a noite em meu início de dia. Era o Mundinho.
As aulas não foram suspensas.
Talvez não soubessem. Meu melhor amigo não mais voltaria.
Para alguns, os dias continuariam iguais.
As aulas em sua turma seguiam sem comoção, talvez para preservar aos coleguinhas – não sei.
Mas, daquelas manhãs não recordo uma palavra sequer das cento e oitenta e sete mil, proferidas pela Auxiliadora, a Professora.
Desde então não vi mais os seus pais.
Mas, recordava as marcas dos cipós e chinelos nas pernas e braços e me atormentava o fato de não tê-lo encontrado”..
Hoje, depois de muito, muito tempo, ainda penso naquela noite e naquele início de dia.
Não sei , se ele brincava de esconder quando desapareceu ou se havia decidido se despedir das torturas e da tristeza. OU se ele se escondeu nas nuvens, e de lá nos olhava…
Mas, o mundo parecia pequeno demais para ele. Tão menino e cheio de ideias, planos…
Talvez o mundo fosse pouco pra ele.
Merecia algo melhor. Muito melhor!
Nota. Pais amem seus filhos! As cicatrizes da infância podem ser eternas…
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