Bem, isso aconteceu há muito, muito tempo, enquanto eu ainda trabalhava na Agência de Correios e Telégrafos, no município de Santa Terezinha.
A cidade era pequena, mas eu amava aquele cantinho do mundo!
A população na época era de aproximadamente 8.000 habitantes, início da administração de Maria Cardoso de Lima.
Uma característica dessa administração foi a mudança e valorização daquele município, ruas pavimentadas e foco na Saúde.
Mulher de pulso forte, disposta a servir – tinha um coração imenso. Seu Vice era Lourinho, um dos rapazes mais amáveis que conheci, o secretário da Prefeitura, o senhor Francisco Sales, Pai do Jota, era um dos melhores sujeitos da região! Super prestativo!
Trabalhava numa Agência pequena, compartilhava os sofrimentos do dia a dia com Luciene, certamente a pessoa mais dócil que conheci naqueles tempos, sofria na época com um problema auditivo, casada com o Manoel, um sujeito tímido e amoroso, super boa praça, e Damiana, uma pessoa linda e tímida, casada com João de Nonô, um excelente comerciante e bom sujeito, mãe de três meninos que me faziam rir por causa das diferenças de personalidade.
Aprendi os apelidos, graças ao Bia, amante da Legião Urbana e artilheiro do futebol nos torneios dos fins de semana – que trabalhava no turno matutino, e nunca os esqueci.
O trabalho costumava ser uma loucura, o embarque dos malotes com as correspondências acontecia diariamente às cinco da manhã.
A agência abria para atendimento ao público às oito e encerrava o expediente às 5:30 da tarde.
Quando se diz atendimento ao público, entenda-se pagamento de aproximadamente 1.600 beneficiários do INSS que eram moradores locais, e das zonas rurais, outros 800 benefícios sociais, de combate a fome e incentivo à educação, pois o País ainda enfrentava as consequências da má administração do período do regime militar e que não foram sanadas nos primeiros anos do regime democrático. O balcão favorecia às dores no pescoço e problemas na coluna., não eram apropriados!
Além disso, havia entrega de correspondências comuns e urgentes e a espera do ônibus que trazia diariamente as correspondências para entrega no suposto horário de 4:30 da tarde -suposto, pois raramente retornava no horário. Normalmente retornava entre as cinco da tarde e as sete da noite.
Como não havia um ponto de ônibus na época, o lugar de espera do retorno dos malotes era um velho banco improvisado ao lado de uma amendoeira, à beira da pista, em minha memória era uma amendoeira (risos) e sob as sombras dessa árvore costumava levar meus livros, pois sabia que a espera provavelmente demoraria um pouco…
Falando um pouco sobre o povo da cidade de Santa Terezinha, na época conheci pessoas naturalmente hospitaleiras, amorosas, observadoras e prestativas. Sempre dispostas a um bom diálogo.
E a história começa aqui.
Como de costume, no mesmo horário me dirigia ao ponto de ônibus improvisado e enquanto lia o meu livro, alguns moradores sentavam ao redor e as histórias começavam. Piadas, dramas, risos, notícias – Seu Deodato era o maior “falador” – gostava de falar da vida em São Paulo.
Entre Marcelinos e Josés, havia um Senhor chamado Firmino, um senhor de pequena estatura, olhos numa variação dum verde, difícil descrevê-los. Não costumava falar uma palavra.
Apenas ouvia as histórias… até que um certo dia, alguém deixa escapar um: “Todo mundo aqui conta a sua história, menos seu Firmino!”
Os olhos verdes daquele senhor brilharam, mas ele disse não ter muita coisa a contar.
Foi quando resolvi dizer: – ” Está bem, Seu Firmino, deixa que eu conto a sua história…”
E comecei: – ” Nos anos 1840, surgiu uma forma de banditismo social, político e cultural, uma “praga” chamada Cangaço…
– “Não se enganem, não há nada romântico no banditismo que eles praticavam… aterrorizavam quase todo o Nordeste, exceto o Piauí e o Maranhão. O primeiro a agir como cangaceiro, foi o Cabeleira, Pernambucano, nascido José Gomes em 1751. – Eu realmente gostava do asssunto!
-“Mas, foi só perto dos 1900 que Lampião, Antonio Silvino e Corisco popularizaram o Cangaço.
–“Dizem alguns que Lampião promoveu saques, torturas, mutilações e estupros para vingar as torturas que sua família sofrera nas mãos de famílias poderosas, que seu pai fora assassinado por um policial – mas, o detalhe é que ele atacava muitas e muitas vezes “aqueles que não podiam se defender”, na maioria pobres. Ele também tinha muitos amigos ricos e os favorecia. Então afirmarem, ser ele, um Herói , um Justiceiro, é questão de interpretação, pois moldamos nossos heróis conforme aquilo que admiramos … eles agiam nos moldes dos sequestradores e traficantes atuais.
-“Eram covardes. Ele e seus bandidos atacavam em grupo e se escondiam na Caatinga. Não suportavam contrariedades e matavam sem piedade.
-” A razão de existência do Cangaço, segundo alguns, era a injustiça social, o poderio dos grandes proprietários de terra e a falta de justiça comum. Os Coronéis tinha suas terras e seus servidores, denominados Jagunços…
-“Os Cangaceiros agiam em grupos pequenos, pois isto facilitava a emboscada. Diz-se que parte das coisas roubadas pelos Cangaceiros era distribuída aos pobres.
Bem, nós gostamos de criar nossas versões de heróis… esse seria o Robin Hood do Nordeste, aquele que roubava dos ricos pra dar aos pobres. – Mas, quando se trata de lendas, não se pode acreditar ou duvidar de tudo. A visão de quem conta a História, costuma romantizar um pouco…
– “Por fim, um grupo militar treinado, conhecido como a Volante, em 1938, acabou com a turnê de sucesso da turma…
Até que, de repente, o seu Marcelino pergunta: -“ Mas, o que é que Seu Firmino tem a ver com isso?”
-“Bem como disse, os Cangaceiros, cujo nome vem de Canga, aquela madeira utilizada na cabeça do gado e que servia para transporte, espalhou o terror por quase todo o Nordeste, com exceção do Piauí e do Maranhão…mas, o que ninguém nunca contou é que numa pequena cidade, aqui da Bahia, um pequeno Jagunço impediu a entrada dos bandidos”.
-“Quem foi esse corajoso?” – Perguntavam
-“Vocês não sabem? O jagunço Firmino! O homem mais corajoso da região Norte e Nordeste!”
Nascia ali a “lenda” do Jagunço Firmino!
E passei a narrar as façanhas daquele pequeno grande homem, que ria como criança das novas aventuras e fazia questão de ouvir suas proezas…principalmente, contra os Cangaceiros!
Aquilo se tornou costume, e todos os dias, Seu Firmino e mais e mais pessoas vinham para ouvir as fabulosas histórias de como um só homem desafiou o Cangaço!
Um dia, ele me agradeceu pelos risos.
E numa Sexta ( estou incerto, quanto ao dia), por volta das Sete e Meia da manhã, enquanto conversava com meu saudoso Pai em frente a casa 114, da Rua Ápio Medrado, Seu Firmino passava por mim, em passos lentos, respondia com risos ao meu: “Bom dia, meu jagunço Favorito!”
Passava rindo, dizendo: -“Esse Menino, esse menino…”
E naquela Sexta, por volta das oito da manha enquanto ainda tomava o seu costumeiro café, seu coração valente parou de bater.
Lembro, ainda, de vê-lo ao chão, com uma breve expressão de dor e também de ter chorado naquele dia.
Lembrei também de alguns costumarem descrevê-lo, como o homem sem passado.
É verdade, que inventei um passado pra ele, mas com o tempo, pesquisando mais a respeito , descobri que ele era um homem muito bom e que não hesitava em ajudar a quem precisasse tampos atrás, não sei se a morte da esposa mudou a sua personalidade…
Talvez, não tivesse a fama de ser aquele que desafiou os bandidos do cangaço ou de outros atos heróicos, que são ampliados por cada boca que reconta a história…
Ele era um homem bom.
Solitário, calado, cheio de defeitos como todos são…mas, era um homem bom.
Lembrar de seu riso tímido enquanto eu inventava um passado para ele, me trouxe de volta às palavras e a ideia de descrevê-lo como aquele que mais me inspirou histórias!
E que saudades daquele velhinho!
Gilson Cruz
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