Acordei meio desesperado, era o dia do meu casamento e quase perdi o horário, de novo.
Levantei às pressas e vi que as coisas estavam bem diferentes.
A casa, a cama, a escrivaninha, o gato, a cachorrinha – não eram mais os mesmos…
Corri até a sala que não era mais a mesma e vi o calendário que não era mais o mesmo, que marcava uma data, que lógico… não era mais a mesma.
As mesmas pessoas passavam com a mesma pressa, fugindo do mesmo calor – torcendo pelas mesmas nuvens de chuva, que certamente não desaguariam …
Parecia o ontem…
Então resolvi fazer um exercício, pensei: – “Acho que já vi este dia…”
E comecei a narrar as coisas de que me lembrava…
“Daqui a pouco, a vizinha vai colocar o lixo no lugar errado novamente…”
“Seu Carlos, o carteiro, vai me trazer a mesma carta… e também vai reclamar do sol e vai me falar de sua aposentadoria que esta se aproximando…”
“Meu amigo Tomaz, retornará da maratona – com mais uma medalha…”
“Ranne fará novamente ( ou pela primeira vez) aquele blues…”
“Paulinho me convidará para o lançamento do livro “Minhas poesias”…”
“O ônibus vai atrasar novamente, então vai dar tempo…”
E as coisas iam acontecendo conforme eu previa – ou sei lá, conforme eu já tinha visto.
Rodrigo me dizia: -“Cara, pensa bem…”
E enquanto ele falava novamente, as mesmas coisas, a minha mente narrava os passos seguintes daquele dia…
O carro atrasado…
Minha mãe desesperada…
A incerteza do futuro…
A certeza de que eu não saberia mais narrar o amanhã.
E novamente. o carro das oito passou às onze e meia, em ponto! Meu Deus, não atrasou nem um segundo!
E entrei no mesmo ônibus, rumo à mesma cidade.
Passando pelas mesmas curvas, ouvindo as mesmas queixas do motorista, que dizia ao Fabrício – o jovem cobrador:
-“A gente não vai ter tempo nem pra almoçar…”
As mesmas pequenas cidades passavam e as mesmas pessoas embarcavam. Por um momento, pensei: -“Acho que vou fazer algo diferente…vou mudar este dia!” – Comecei a contar piadas, entreter os passageiros que riam, a cantar com os bêbados que se divertiam nas últimas poltronas…
E quando me dei conta, foi exatamente isso o que fiz, ontem! Eu estava preso!
Desesperado, pensei em sair do carro, sair correndo e quando levantei, percebi – o ontem não se muda, ainda que acorde nele!
Não daria para mudar o ontem, o ontem já estava moldado.
O futuro ainda era incerto…
Então, resolvi deixar o o ontem acontecer.
Novamente, coloquei o lixo da vizinha no lugar certo, agradeci ao Seu Carlos e desejei a felicidade que ele merecia, após tantos anos de serviço…- Eu não sabia que seu coração não resistiria por mais quatro anos, o futuro era incerto.
Ele faleceria aos 54 anos.
Chorei novamente com o blues na voz do Ranne e me emocionei novamente com as poesias do Paulinho.
Contemplei cada curva da estrada, rindo do incentivo do Rodrigo.
E quando cheguei ao destino, o destino me aguardava.
Chateada, estressada, com uma irmã maluquinha pela casa, enlouquecendo todo mundo…
E as coisas aconteceram novamente naquele ontem cheio de surpresas, que eu não poderia mudar – mesmo que tentasse por milhares de vezes.
E assim para sempre seria a minha vida.
O futuro certamente traria novas histórias, que seriam contadas num dia – como um dia, o ontem.
Veja mais em: O tempo ( Contador de histórias) ‣ Jeito de ver
Comentário (3)
Paulo Santana Fernandes Junior| 12 de maio de 2023
Que conto lindo! Por vezes nos prendemos no passado! Contudo, a vida é um rio, sempre com suas águas correntes! Um filósofo chamado Heráclito de Éfeso, o “obscuro”, como é chamado, disse uma certa frase, bem mesmo antes de Sócrates, “Não se pode banhar nas águas de um rio por duas vezes”. O ontem já não existe mais! Assim como aqueles que passaram com ele.
Bell| 13 de maio de 2023
👏🏻👏🏻👏🏻
GILMAR DA CRUZ CHAVES| 13 de maio de 2023
Realmente, um conto muito bem planejado. Lembranças nos fazem viver de saudades e de alegrias. E é muito bom poder ter momentos escritos como o que nos foi apresentado. Parabéns. É muito bom lembrar do ontem!, Significa que hoje estamos vivos pra ouvir e também contar os bons acontecimentos.