Sinceramente, estou sem palavras…
Num desses dias quentes, enquanto limpava a área em frente à minha casa, ouvia com atenção as palavras do amigo Marinaldo.
Os dreads grisalhos eram registros de uma longa história de amor à música, a pele escura era o livro que registrava todo o preconceito e injustiça que sofreu na vida, e os passos lentos talvez fossem a única forma de mostrar que não mais se apressava…
Que precisava andar, planejar melhor seus dias.
Sua voz forte e mansa falava pouco do passado, mas se animava ao contar seu histórico como músico.
Sim, o Marinaldo fora músico por muito tempo. Excelente contrabaixista, baterista, já bancou o vocalista em algumas ocasiões, como ele costumava dizer. Ele era mais conhecido como “Alô Bahia”.
Vivia sozinho numa casa branca na Rua do Chaveiro e criava um valente cachorrinho branco, que obedecia prontamente às suas ordens.
As noites de sexta e sábado eram regadas por belas músicas que ele cultivava em sua coleção, pérolas que iam desde os anos 1960 até os dias atuais.
Às vezes, sentava-se à sua porta com um violão mogno, acompanhando as canções que saíam das caixas de seu velho MP3.
Costumava reclamar da qualidade das músicas atuais, dizia serem canções preguiçosas, repetitivas, monótonas… E ria ao lembrar dos variados estilos que lutavam por espaço em décadas passadas, quando, junto aos velhos companheiros de banda, buscava algo novo para ensaiar.
Lembrava com saudade de algumas bandas que teve o prazer de integrar.
As memórias
Falar do talento da Banda Legenda trazia risos e histórias de viagens, plateias dançantes e pouco dinheiro… Ser músico não dava dinheiro. Era muita estrada, muito estresse acumulado, muitos contratos malfeitos e, por fim, muita confusão.
Falar dos problemas da estrada era uma maneira de fazer as pazes com o passado.
Ele ria ao contar que, em uma das bandas que participou, havia um músico que era “muito estrela”. A banda era boa: bons guitarristas, tecladistas, bateristas, backing vocals, aparelhagem… Mas o problema era “o estrela”.
Num dos episódios, o lead singer se empolgou tanto com a própria interpretação que saiu recolhendo os microfones dos cantores de apoio, terminando a música cantando em quatro microfones ao mesmo tempo. Ele ria ao dizer que o baterista queria arremessar as baquetas na cabeça do cantor!
Falava com imenso carinho da Banda Doce Magia, onde também teve o prazer de tocar. Contava sobre companheiros que se divertiam com a música e sobre as viagens e shows que fizeram.
Desse tempo, lamentava apenas não ter nenhuma gravação ou fotografia da época, especialmente do dia em que se apresentaram no antigo clube dos ferroviários. Isso apenas!
Lembrava não mais com tanta saudade de outras bandas que integrou.
Talvez percebesse tardiamente que as pessoas não eram tão amigas ou legais quanto ele acreditava no início.
Para exemplificar, contou que uma nova banda em formação o convidara para participar do projeto. Animado com o espírito da banda, abraçou o projeto, mas a competitividade entre os membros era tão grande que ele perdeu o entusiasmo.
Noutra ocasião, enfrentava problemas pessoais e tomou um porre antes do ensaio. A banda o dispensou.
Para narrar suas histórias, costumava usar seu vocabulário próprio: “Por causa de mauriçagem é que essas coisas acontecem…”
O novo projeto
Entre risos e casos, me contou seu mais recente projeto:
– Irmão, não vou mais tocar numa banda. Hoje eu quero é contratar um monte de meninos bons pra tocar e me concentrar nos contatos…
Sua nova e boa ideia era cuidar da carreira de novos talentos, ser algo que faltava nos seus dias.
Nutria seus sonhos ouvindo as velhas músicas, reformando instrumentos antigos e aparelhagens, enquanto ganhava a vida fazendo pequenos consertos e serviços de pedreiro na vizinhança.
Era imparável!
Sim, era imparável, mas seu coração não teve o privilégio de realizar aquele que seria talvez o seu maior sonho: viver de música.
Depois de tantas histórias, percebi que ele não me contara sobre seus filhos, sua família… E a entrevista agendada jamais será realizada.
Talvez a imaginação da fotografia da apresentação no antigo clube dos ferroviários fosse sua melhor recordação, o sonho de tocar naquele que era o melhor lugar da cidade, na era dos bailes. A sua realização!
Mas o silêncio deste dia, a falta de palavras, talvez mostre que as histórias se calam, que somente aqueles que viveram podem descrever de fato o que sentiram em suas aventuras.
E ele sentia felicidade!
Sim, felicidade.
Leia também: Banda Acordes – a Banda que não aconteceu ‣