“Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era bela,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra estrela”.
“A Rua” – Mario Quintana
Não sei se o prédio da Prefeitura era cinza ou se essa é a cor da minha memória, mas era verão quando lá cheguei, há muito tempo.
Os velhos bancos deteriorados numa velha praça de imensas árvores nativas, sem ladrilhos, castigada pelo andar de milhares de pessoas ao longo dos velhos anos.
De frente com a praça, a tradição de Seu João do Bar, a meiguice da Professora Marlene e os doces risos iluminados de Dona Lourdes.
Senti-me bem-vindo.
Dona Maria Medrado e as velhas fotografias falavam um francês perfeito e um belo inglês – privilégio de uma antiga elite.
Lembro das histórias que contava…
Suas fotografias me deixaram apaixonado e as histórias de sua vida, seu primeiro amor, seus pais, primos e irmãos me mostraram o quanto a vida muda em tão pouco tempo.
Caminhando mais à frente, havia o Paço Municipal e um espaço que seria, no futuro, a Câmara Municipal dos Vereadores.
Antes, as sessões eram realizadas num velho espaço na Praça da Bandeira, vizinho ao cadastro de Serviço Militar, de onde podia ver o Clemenceau Teixeira.
O Clemenceau era o antigo colégio onde os alunos pareciam felizes por estudar.
Aquele prédio onde, havia muito tempo, tratavam as folhas do fumo, lá conheci a Nair.
Nair era jovem, linda, como era também lindo o seu jeito de falar. Amava o Fernando Mendes e Giz, da Legião Urbana.
Amiga das melhores histórias e que jovem se foi.
Na mesma rua havia a Delegacia de Polícia e o delegado Joanito e o cabo Bellini.
Joanito era amável e corajoso.
Disfarçado, em uma ocasião, conseguiu abater um bandido extremamente violento.
Mas era paciente.
De lá havia uma subida para a rua, que seria o alto do sossego, e descia a Rua da Casa Forte… onde morei e descobri os escorpiões…
Não, não sou amigo deles. Era lá que moravam as crianças Yana, Everaldo, Nil… e no número 16, a Nair.
Naquela rua havia ainda o rebuliço; uma pessoa querida havia perdido a vida. Afogado.
Triste começo.
Descendo a Rua da Casa Forte, havia a entrada para a rua do Minadouro, ou Minador, onde sempre morará em minhas memórias a Professora Dinalva.
Ela amava me presentear com mangas e mangas.
Eu amava Dona Dinalva e Dona Edite, a encarregada de me entregar.
As velhas e belas árvores embaladas pela ventania me encantavam tanto quanto me assustavam.
Como era uma rua sem saída, então costumava voltar e andar em nova direção pelas ruas 2 de Julho, onde morava o Bigu e o meu amigo Nereu.
Nereu morava no Rio, amava o Vasco e me explicava política… se tornou colega de trabalho.
Havia também um campo próximo à Rua 2 de Julho, e por isso chamavam-na também de Rua do Campo (e isso me enlouquecia; numeração repetida era sinônimo de confusão…)
A rua de cima era a Rua Elísio Medrado, tio da Dona Maria, da primeira rua em frente à praça, que me disse uma vez ser este uma pessoa muito bondosa.
Que ajudava os doentes.
Não sei se, por coincidência, esta rua levava ao município com o mesmo nome, mas antes, na metade do caminho, me permitia descer e visitar Pedra Branca, onde conheci a Almerinda.
Impossível não amar a Almerinda… sempre preocupada com os filhos.
Mas, desta vez, voltei da Rua e encontrei a Rua das Pedrinhas e, de lá de cima, vi a pequena ponte entre as ruas 2 de Julho, Pedrinhas e a Praça da Bandeira, vizinha à Duque de Caxias.
Resolvi não voltar pelo mesmo caminho; segui em frente e cheguei à rua Alto da Boa Vista.
De lá de cima, olhei a primeira rua.
O grande prédio da Igreja.
A minha praça favorita, onde fui vizinho por um tempo.
A Praça Ápio Medrado.
Fotografia por Jeitodever.
Vi a Rua José Batista, Castro Alves, Armando Messias…
Não havia muitas ruas.
Talvez o casarão em frente à agência onde trabalhei por dez anos ainda guarde as memórias de uma linda bailarina que um dia passou as férias naquela pequena cidade.
Ou a pequena agência da época guarde a tristeza de estar só, por tanto tempo.
Talvez pareça estranho lembrar tanta coisa depois de quase trinta longos anos…
Recordo a Moreninha, a prefeita eleita na ocasião, Clemente, o ex-prefeito da época, Dona Antonia, Dona Margarida, meu irmão Rubão e a estrada que levava a Castro Alves…
Onde os moradores revoltados um dia queimaram pneus em protesto pelas péssimas condições da pista…
Dia histórico!
Quando cheguei, a cidade era pequena e talvez não tenha crescido tanto.
Tive receios de voltar e encarar as memórias.
A cidade era pequena e grande para mim, que não conhecia muitas pessoas e que se apaixonou por todos de uma maneira bem especial, embora vivesse sozinho, longe da família e dos velhos amigos.
O vento soprava nas minhas madrugadas e, por muitos anos, foi o som das minhas noites.
Me traziam versos que não pude compartilhar e que destruí quando chegou a hora de partir.
E parti.
E a imagem daquela pequena cidade ainda permanece gravada, como uma fotografia, em minha mente.
Impossível não recordar a Ene se preocupando em ajudar as pessoas, o amor entre as famílias com quem pude trabalhar, a Ellis que amava a Argentina, o incrível Doutor Marcos…
Impossível esquecer o céu e a lua, nascendo brilhantes no horizonte, entre os montes, fazendo companhia a mim e aos meus livros e ao violão, naquela mesma velha praça. Cheia de árvores.
Há muitos ainda na memória, se transformando em palavras, na minha saudade…
Muitos ainda habitam as minhas memórias e sonhos.
As recordações me arrebatam aos meus vinte e três anos, quando a cidade apenas começava a despertar.
Onde a lua, as ruas escuras e a solidão de minha pequena casa me ensinavam o duro processo de crescer.
E meus passos se apagaram, como os passos daqueles que caminharam na velha praça antes de mim.
Talvez, no futuro, com cabelos ainda mais grisalhos, eu volte e trabalhe apenas mais um dia na terra em que comecei… faça as pazes comigo mesmo e abrace pela última vez, para sempre, o meu pequeno lar.
A cidade de Santa Terezinha.
“Mas, as coisas findas,
Muito mais que lindas, estas ficarão”
– Carlos Drummond de Andrade
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Santa Teresinha (Bahia) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)